Fragmentos de uma noite sem enredo

Arregalo os olhos e só vejo breu. Um ligeiro vulto de cachos de buganvília dançando ao vento. Um ar fresco envolve meu corpo e a alma fica em sintonia com meus fantasmas. Sempre admirei dama-da-noite, mas seu cheiro me incomoda, aproxima-me da morte.
Bem longe brilham as estrelas, elas sim, dão encanto à noite e hipnotizam meus pensamentos. A lua tira-me o chão para em seguida devolver-me seduzida pela vida e pelo inexplicável.
Redobro meus cuidados com gatos: são traiçoeiros, “eles jamais dão, eles nem se quer retribuem – apenas respondem e ficam ronronando”.
Às vezes, refugio-me dentro da noite, apenas o tempo é meu companheiro. Ainda tenho vontade de adormecer sobre nuvens e tecer delicados sonhos protagonizados por valentes cavalheiros.
Quando os atropelos do dia me deixam sem prumo, basta uma baforada de vento para arrepiar-me e destampar meus demônios. Diz um filósofo que no escuro sente-se o tempo de modo diferente do que no claro. Há aqueles que dizem que nos transformamos ao escurecer. Cruz credo, já pensou a gente acordar e está dormindo com um ser estranho. Provavelmente, eu seria visitada por um lobisomem, por tanto que aprecio lua cheia. Misericórdia, valei-me São Galvão.
É verdade que a noite nos permite modelar sonhos e deixar a decência rasa e os olhos fundos de amor. Por que será que a noite é mais sedutora para o amor carnal, mesmo em noites de tempestades, desconfio. Se levarmos para o lado estético a resposta é que à noite todos os gatos são pardos, sem falar nas horas extras, no serão – um álibi. Certo é que o amor é energizante em qualquer instância, entre pardos e brancos, gregos e troianos.
Voltemos à noite negra e solitária. Perigosa e surpreendente neste tempo de rajadas e furacões que se alastram diante de nossos olhos saudosos das praças enluaradas. Às vezes, durmo com um incompreensível excesso de medo, escorregando-me num aglomerado retido de desigualdades e manchado de pesadelos. Tenho insônia. Acordo e procuro o breu desabitado de minha alma para refugiar-me. Avisto apenas as cidades se recolhendo, grades e cercas se alastrando. Menino, que pega manga em quintal de vizinho, morre eletrocutado.
Eu sei que não posso dormir a noite da desesperança, mas sinto que perco os argumentos para seduzir o amanhecer e não gosto dessa lambança. Meus vestidos estão ficando enrugados, e a passarada da cantoria diurna está migrando seu canto para o anoitecer, a poluição está ameaçando meu despertador matinal. Quando o sol piscar, quem vai saudá-lo, nunca vi beija-flor à noite e nem vaga-lumes alumiar o dia.
Basta uma estrela para aliviar o chumbo dos pés, e de papo pros céus fecho os olhos, abro o coração e acolho meus fantasmas. Depois do breu, é extraordinário o amanhecer sem fragmentos de rancor. Também o sol me transforma em Maria que sou.
Outros dias virão, sempre com procissão de vidas entrecortadas por ensaios de andorinhas. Outras noites nos envolverão no fundo da escuridão, à espreita dos olhares das corujas. Ainda me iludo, vamos descobrir o Brasil, exterminar furacões e em noites escuras, nas esquinas da vida, roubar beijos e matar de amor.
Doe amor, é Natal.

 Maria Esther Lacerda
Autora de Homem de Cama e Mesa ou Qualuqer Amor
Colunista dos Jornais Hoje em Dia, Diario do Aço entre outros