Gauche – Do outro lado da vida

Quando eu nasci um anjo torto desses que vivem na sombra disse… Não. Eu não sou Carlos Drummond de Andrade… O anjo disse: – Vai, Ambrósio, ser gauche na vida!
Eu nunca soube o que significava a palavra “gauche”, e acabei descobrindo da pior maneira… Morrendo. É, eu morri. Morri mesmo, “Bati as botas”, “estiquei as canelas”, “vesti o paletó de madeira”, “passei desta pra melhor”, enfim; morri.
Bem, isso não significa que eu esteja morto agora… É, eu sei, é confuso. Vamos começar do início…
Eu levava uma vida normal, quer dizer, medíocre, como funcionário público. Minha única emoção era no fim do mês quando eu abria meu contracheque e tentava descobrir quais benefícios foram pagos e quais foram cortados…
– Que mixaria… Trabalhar o mês inteiro aturando desaforo da ralé pra ganhar essa “vergonha”. Deveriam até me pagar insalubridade, isso sim. Afinal eu atendo tanta gente feia que periga eu até morrer de susto qualquer dia – pensei alto.
– Ambrósio? Telefone pra você! – gritou um colega da repartição pública.
– Obrigado– balbuciei enquanto caminhava até o telefone.
– Alô? O quê, minha mãe está morrendo?! Tô indo pra aí. – respondi com a voz embargada desligando o aparelho.
O hospital onde minha mãe estava internada já há vários meses ficava bem próximo do meu trabalho, que ficava bem próximo de minha casa, enfim, era tudo muito próximo já que a cidade onde morava não era muito grande. Portanto, cheguei rápido. Mas era tarde…
– E ai doutor? Como ela está? Ela vai mesmo morrer? – me antecipei ao médico.
– Infelizmente sim. Mas ainda há tempo de se despedir. Pode entrar– disse secamente o doutor.
– Mãe? – disse baixinho após fechar a porta e se ajoelhar próximo a cama onde mamãe estava deitada.
– Meu filho! – respondeu a velha moribunda.
– Me desculpa mamãe. Estava tão ocupado com o trabalho que nem pude visitá-la… – argumentei.
– Eu sei meu filho. Você é um menino muito trabalhador, e eu tenho certeza que se você não veio me ver nos últimos três meses enquanto estive aqui não foi por falta de vontade… E sim, por falta de vergonha mesmo… E olha que você trabalha no prédio do outro lado da rua… – ironizou mamãe, que continuou:
– Mas não fique triste meu filho. Agora não adianta chorar o “leite desmamado” (sic). Mas eu quero que você me prometa uma coisa… – disse mamãe antes de ter um ataque de tosse.
– Calma mamãe! – adverti.
– ME PROMETA! – esbravejou a velha.
– Prometer o quê mamãe? – perguntei.
– Apenas prometa menino malcriado – disse ela dando um safanão na minha cabeça.
– Tá bom, tá bom! Não precisa bater né… – disse enquanto massageava meu cocuruto. – EU PROMETO! – jurei.
– Mas o que foi mesmo que eu prometi? – indaguei ressabiado.
– Me prometa que depois que eu morrer vai realizar o meu sonho: Se tornar um ARTISTA! – disse mamãe olhando pro teto por alguns segundos, com os olhos lacrimejando.
– Um artista mamãe? Como assim? – quis mais detalhes.
Não havia mais tempo. O aparelho hospitalar acusava que o batimento cardíaco de mamãe havia parado. Ela faleceu com os olhos abertos e olhando para o teto. Fiquei pensando em suas últimas palavras: “ARTISTA, o que ela quis dizer com isso?”.
– “Como vou cumprir esta promessa? – disse alto enquanto os enfermeiros entravam no quarto para tentar reanimá-la.
Porém, antes que os homens de branco pudessem fazer qualquer coisa, mamãe acordou subitamente, ergueu a parte superior do corpo e com uma voz áspera disse olhando para mim:
– E se não cumprir a promessa, voltarei para buscá-lo!
Após a ameaça, mamãe voltou a morrer. De fato.
Durante uma semana fiquei pensando em suas últimas palavras: “Artista. Como assim? Eu não sei cantar, nem pintar, nem tocar qualquer instrumento… Definitivamente arte não é a minha praia. Como sempre minha mãe continuava a me dar trabalho mesmo depois de morta. Ao invés de uma herança, a velha me deixou uma dívida: uma promessa a pagar.”
Quando retornei de meus pensamentos, olhei de súbito o relógio de pulso, e me assustei: Eram seis da noite e estava me atrasando para a missa de sétimo dia de minha mãezinha. Se não comparecesse àquela missa, certamente minha mãe voltaria para me buscar. Felizmente a Igreja também ficava perto, no fim da rua. Tranquei a casa e apressei o passo. A noite estava fria. Olhei para o céu e vi nuvens cinzentas encobrindo a lua cheia. Ouvi algo. Olhei para trás, mas não havia ninguém. Aliás, a rua estava deserta. Achei estranho. Continuei a andar. Outro barulho esquisito ressoou. Parei e me virei:  Não era nada. Quando me viro de volta quase fico cego por uma luz que ofusca meus olhos.
Era um anjo. De asa e tudo. Não acreditei e enfartei.
E foi assim que eu morri.
Já sei. Agora você deve esta se perguntando: “Se ele morreu, como pode estar contando tudo isso?”
Bem, essa é a segunda parte da história e tem a ver com o quê há depois da morte…
Quando acordei, fui me levantar e bati com a cabeça em algo. Não conseguia me mexer. Estava preso dentro uma enorme caixa. Ou melhor, caixão. Então me desesperei. Provavelmente, havia sido enterrado vivo. Comecei a me debater e, de repente, sinto o caixão ser erguido e, em seguida, aberto. Após retirarem a tampa do caixão me surpreendo com dezenas de pessoas ao meu redor e todos estavam sorrindo.
– Que brincadeira é essa? – disse irritado saindo de dentro do caixão que acabara de ser desenterrado.
– Calma – disse um sujeito trajando negro de cima a baixo. – Você morreu, e esta é a sua recepção. Exatamente como você queria – informou ele.
– Que “papo” é esse? Eu não “tô” entendendo nada, disse.
– A vida após a morte é diferente para cada um e depende daquilo que você acredita – iniciou o sujeito.
 – Tá vendo aquele pessoal ali? – disse ele apontando para uma fila indiana. – É a fila dos cristãos fiéis, eles morreram e estão indo para o céu. Aquela outra ali, é a dos ateus. Eles não sabem para onde vão…
– Já você sempre se queixou da vida e dizia que “ela”, a vida, deveria ser como aquela descrita em um texto de Charles Chaplin, isto é:
– Deveríamos morrer primeiro, para nos livrarmos logo desta parte. Viver num asilo até ser mandado embora de lá por estar muito novo. Aproveitar a aposentadoria jovem após trabalhar 40 anos. Ir para a faculdade, e depois para o colégio. Ter então várias namoradas. Virar criança e não ter mais nenhuma responsabilidade, até se tornar um bebê e terminar tudo com um maravilhoso orgasmo dentro do útero materno – parafraseou o sujeito.
– É verdade – concordei esboçando um leve sorriso. – Mas como você sabe disso? – quis saber, após recobrar a seriedade. – Eu ficava imaginado isso, mas nunca tive coragem de comentar nada com ninguém? – perguntei, desconfiado.
– Eu sei disso.  Foi no que você sempre acreditou, mas sempre teve vergonha de assumir, afinal, era algo filosófico demais para alguém da sua postura – enfatizou. E a propósito, o texto não é de Chaplin. É do comediante Sean Morey – completou o homem misterioso.
– Mas quem é você, um anjo? Por acaso era o anjo que eu vi antes de… – hesitei.
– Morrer, é o que ia dizer não é mesmo. Sim, precisa aceitar que está morto. E não. Não sou um anjo. Sou a Morte – declarou o sujeito, que continuou:
– Deus enviou um anjo para lhe ajudar a cumprir a promessa que fez a sua mãe, ser um Artista. Mas não era pra você morrer. Isso tudo foi um acidente – lamentou.
– Então aqui está você, “do outro lado da vida”, pra viver o ciclo exatamente ao contrário. Isto é, quando você nasceu um homem de branco, o médico, o entregou a seus pais para cuidarem de você, enquanto vários parentes o aguardavam na maternidade. Agora que morreu, um homem de preto, eu, a morte, estou aqui para levá-lo até seus pais, para que VOCÊ cuide deles, enquanto várias pessoas o aguardam no seu enterro, digo desenterro – explicou. – Mas agora, por favor, temos que ir. Me acompanhe – disse a Morte me mostrando o caminho.
– Então quer dizer que você é a morte? – perguntei incrédulo, enquanto caminhávamos.
– Sim, e vou levá-lo até seus pais – disse seriamente o sujeito.
– Sei. E quem são aquelas pessoas? – continuei de forma incrédula.
– Parentes, e amigos mortos… E alguns vendedores de plano de saúde também – disse a Morte, excentricamente.
– Como? – perguntei.
– A última parte foi brincadeira. Foi só para descontrair – disse a Morte, estampando seu sorriso malicioso.
– Este lugar é tão estranho quanto a minha cidade – observei, me distraindo com o local.
– Lembre-se meu caro. A vida após a morte depende daquilo que você acredita e conhece, ou seja, este lugar, provavelmente, também é uma versão sua – explicou. – Chegamos– informou a Morte.
– Esta bem, aqui estamos. Mas onde estão meus pais? – perguntei. – E quem são estes dois? – completei sussurrando próximo ao ouvido do “papa-defunto”.
– Senhor Ambrósio, lhe apresento seus pais: Seu Aderbal e Dona Matilde – disse o sujeito fazendo uma reverência aos dois jovens a nossa frente.
– Não acredito. Outra brincadeira? Estes dois são mais novos que eu. Ela deve ter uns 20 anos, e ele 10 anos de idade, enfatizei já quase perdendo a paciência.
– Na verdade sua mãe tem neste momento 17 anos, e seu pai, 9. Aqui o tempo passa mais depressa do que no outro lado, e todos vão ficando cada vez mais jovens. E desta vez é você quem terá que cuidar da “rebeldia” dela e das estripulias dele. Você é responsável por seus pais agora! – enfatizou a Morte apontando para os dois sorridentes jovens que me abraçaram.
– E não é só isso… – continuou o sujeito após eu conseguir me desvencilhar de meus supostos pais. – Ainda terá que arranjar tempo para cumprir a promessa que fez a sua mãe: se tornar um artista. A “ala dos artistas” fica por ali – disse o “Senhor dos mortos” apontando para o leste. – Talvez possa aprender alguma coisa com eles. E não se esqueça de levar seus filhos, digo pais – brincou novamente a Morte.
Foi ai que eu vivi uma situação nunca antes imaginada por alguém. Um filho levando os pais mais novos, diga-se de passagem, para passear como se estes fossem seus filhos. E o que é mais incrível: Nunca pensei que fosse me divertir tanto… Aliás, é como se eu nunca houvesse me divertido de verdade em toda a minha vida.
Pela primeira vez fui ao circo. Pela primeira assisti uma à ópera. Pela primeira vez entrei em uma galeria de arte. Pela primeira vez saí com minha família. E tudo o que eu nunca havia feito a vida toda fiz depois de morto, e pela primeira vez fui feliz.
Quis aprender um pouco de tudo. E toquei violão, e pulei do trapézio, e pintei um “Picasso”, e atirei facas me equilibrando sobre um monociclo, e fiz um dueto musical com a Morte, e fiz arte. E foi ai que eu descobri o significado da palavra “gauche”.
Ser gauche é viver intensamente rindo da vida, mesmo que você esteja “morto”. É acreditar que o amanhã será melhor. É ser um artista em todos os momentos.
E vivi assim, até ficar muito jovem. Até perder novamente meus pais – que se tornaram meus filhos. Até virar de novo uma semente. Até ser trazido de volta para este mundo pelo mesmo anjo que vi antes de morrer.
Então, eu nasci de novo e ainda no berço da maternidade aquele anjo olhou para mim e enfim disse: “Vai Ambrósio ser gauche na vida!” E agora eu digo: vai Maria ser gauche na vida… Vai José ser gauche na Vida… Vai João ser gauche na vida, que a vida é mais curta que cumprida!”

Leonardo Gomes Ferreira – Coronel Fabriciano-MG