O Arquivo Vivo da Prefeitura

No interior de Minas Gerais, em uma cidade com mais terra do que asfalto, em uma casa com mais barro do que cimento, em uma cama com mais madeira do que colchão, Antônia, uma mulher com mais coragem do que força, abriu as pernas mais grossas do que sãs para passar um menino com mais carência do que esperança. E ele passou, com as carências, sem as esperanças. Essa tal esperança, acostumada a ser sempre a última a morrer, nesse dia, teve uma morte precoce que coincidiu com a morte da própria Dona Antônia.
Primeiro fato curioso da história: Antônia que, quando viva, já não tinha as pernas sãs, agora, quando morta, não mais fechava as canetas que se abriram para o menino passar. Nem o médico nem a parteira conseguiram cerrar as pernas dessa mulher que se fazia de uma só vez mãe e defunta. Foi preciso que o agente funerário, que não dava bolas para os poderes do sobrenatural, amarrasse as pernas da falecida para impedir que a via pela qual o menino saiu ficasse aberta para novos transeuntes agora que o mundo se fechava para Antônia.
O menino, quase tão morto quanto a mãe, não chorou. A parteira sim deixou correr algumas lágrimas ao saber da morte da mãe do garoto. Uma ou outra senhora que ali estava também encheu os olhos de água. Mas o menino, a exemplo do médico, não chorou. A parteira falou para as paredes: Os homens realmente não choram. E o tal menino já nascera homem. Não que fosse um espécime de Macunaíma. Não nasceu tão esperto e tão falante quanto o herói sem caráter, mas sua atitude perante a vida demonstrou que não era homem apenas pelo músculo que carregava entre as pernas.
Sabido o sexo e a força da criança, era preciso decidir com quem o pequeno ficaria. A mãe não tinha parentes na cidade. Os vizinhos não queriam aquele menino feio, mais carente do que esperançoso. A parteira não trocaria suas lágrimas por tão grande assistência. O médico não o adotaria. Todas essas alternativas foram negadas, principalmente a que diz respeito à barganha entre as lágrimas e a assistência da parteira que se sentiu ofendida com tal proposta.
Portanto, restava encaminhar o pirralho para uma creche. Qual? Perguntou um atrevido. Calou-se o atrevido; calou-se o povo logo em seguida. E quando o povo se cala é porque não há mais povo. Caso contrário, os cochichos continuam. De fato, só sobrou no quarto a cama com mais madeira do que colchão, o menino com mais carência do que esperança e a parteira com mais lágrimas do que assistência. Era um caso de polícia, ela falou para o povo que ali não mais estava.
De polícia ou de política, não sabemos bem. A moça acabou por levar o menino para a prefeitura. Se os que choram já correm o risco de não mamar, imaginem os que recusam a esse trabalho. Preguiçoso…, o chamou a parteira antes de entregá-lo para o prefeito junto a um pedido de encaminhamento para a creche. O prefeito, muito ocupado, pegou o menino e o pedido quase sem diferir quem é um e quem é outro. Com os olhos fixos, como quem lê um contrato de aluguel, o governante deu a ordem a seu capacho: Coloque-o junto com os outros processos. Nunca se soube se o referido prefeito era frio a tal ponto ou se o capacho é que tinha o pensamento tão concreto que não pudesse metaforizar o destino da criança e, claro, o do processo. Pronto, levou-os para a sala e arquivou, meio sem jeito, o menino e o processo junto aos outros arquivos.
Mas, se contrariando todas as crianças, o moleque não havia chorado ainda, naquele momento, contrariando todos os processos, petições e arquivos que têm por costume ficar quieto nas estantes, o menino chorou. Mesmo um personagem atípico e excêntrico como o nosso precisa de comida. Ao prefeito chegou a notícia pelo capacho oficial: Seu prefeito, o último arquivo… ele chorou. O prefeito, que não entendera a comunicação, não deu de desentendido: Chorou? Que alguém acalme esse processo com uma boa propina. O capacho então viu encolher sua saia, pois sabia que o prefeito não gostava de repetir suas ordens. Foi então que se sentindo não só autorizado, mas, principalmente, ordenado a usar propina para acalmar o tal processo, esse fulano que chamamos de capacho oficial, procurou Antônia, o que para alguns se revelou uma grande obra do destino, enquanto outros atribuíram o caso à simples falta de criatividade do escritor que desenha nossas vidas. Antônia, a mais recente na história, era, ao contrário da primeira, uma moça mais forte do que corajosa, porém, justiça seja feita, mais gorda do que pusilânime.
Antônia, gorda, forte e pobre, aceitou a propina e serviu de ama de leite do tal processo. Quase um mês se passou sem que o prefeito notasse o desvio da verba e até mesmo a presença da criança, que, acostumada agora a ser um processo como outro qualquer, já quase não chorava. Exceto, obviamente, nos dias que Antônia, por passar a noite com Queiroz, chegava atrasada ao novo emprego que arrumara na prefeitura.
No mais, podemos dizer que não há espaço mais tranquilo para uma criança passar seus primeiros dias. Uma sala serena, onde nada acontece, bem espaçosa, e, o mais importante, onde poucas pessoas têm interesse de entrar. Sem contar que o rapazinho era bem alimentado pela sua ama de leite que, não nos esqueçamos, era muito carinhosa, principalmente com o negro Queiroz que também muito a estimava, embora ambos não quisessem assumir o tal namoro. Brincadeiras não havia por ali, mas estava cedo para tal. E antes que a o mundo lúdico pudesse fazer falta àquela criança, o prefeito se deu conta do ocorrido. Um dia, ao abrir a sala, ele se deparou com uma criança pálida e magra. Mandou chamar urgentemente o capacho que se explicou: O senhor foi quem pediu para arquivá-lo junto com os demais. Demais o quê, seu imbecil, replicou o prefeito que agora temia o caso de a Prefeitura abrigar outras crianças. O capacho teve que se explicar, mas antes que chegasse ao fim, o prefeito ordenou: Dê um jeito nessa situação.
Certo está que o capacho não podia levar a tal criança para sua casa, o que podia ser mal interpretado pela sua mulher. Se, por pouca propina Antônia o amamentava e por nenhuma trocava suas fraldas, um pouco mais de dinheiro resolveria a questão. Mas não, a nova funcionária da prefeitura, já promovida para o cargo de responsável legal do tal processo, antes mesmo de completar um mês de trabalho, já fazia suas exigências. Nem mesmo diante a uma ameaçada demissão ela recuou. Não levaria trabalho para casa e queria aumento. O capacho, sem saber se estava autorizado a aumentar a propina, pediu uma semana de prazo. Ao consultar o prefeito, descobriu maravilhado que tinha total autonomia para resolver o processo do tal menino. As ordens de seu chefe não abrigavam equívocos: Ande rápido com a papelada e resolva esse caso com o dinheiro que for preciso. Andar com a papelada ele não sabia o que era, mas usar o dinheiro que fosse preciso era coisa que já estava bastante acostumado. E o usou.
O salário de Antônia aumentou e agora a moça já pensava em se casar com Queiroz. Esse, por sua vez, advertiu: Cuidado Antônia, não esqueça que o sucesso de seu novo emprego está na sua própria demissão. Antônia chorou frente a essa realidade e pediu mais aumento, o que o capacho foi obrigado a fazer.
Os dias se passaram e o menino, ainda sem nome, tratado muitas vezes por pirralho, outras por moleque e ainda outras por processo, petição ou arquivo, falou sua primeira palavra: Propina! O susto foi geral, os funcionários todos da prefeitura foram visitá-lo. Já então não havia ninguém que não soubesse de sua existência. Ao saber do caso do menino trancado na sala de arquivos, as pessoas ficaram com dó, alguns revoltados, mas todos, ao vê-lo ali, no meio dos processos, a falar propina, não se contiveram e perdoaram todas as perversões feitas pelos homens desde o tempo de Eva e a serpente. Que gracinha, diziam as mulheres. Que molecão, diziam os homens. A oposição quis usá-lo como testemunha da corrupção, mas mesmo esses, ao chegarem perto daquele poço de simpatia e carisma, também se emocionaram. Houve um cético que duvidou: não acho que ele diz propina, talvez seja papai. Ninguém deu ouvido a essa maluquice e agora já havia quem fizesse apostas sobre a próxima palavra do pirralho. Uns apostavam em “corrupção”, outros achavam a palavra difícil demais e confiavam em algo mais fácil como “dindim”, “meias”, “cuecas”, “pizza” e “iates”. Mas se uns o subestimavam, havia também os que se fiavam na possibilidade bizonha de que a próxima palavra do menino seria “nepotismo”.
Nem uma nem outra, o menino custou a soltar sua próxima palavra e mesmo os choros diminuíram. Pois, uma vez que todos sabiam de sua existência, mesmo quando Antônia atrasava ou falhava, outras mulheres lhe ofereciam seus seios ou, no caso de tê-los secos, ofereciam papinhas ou mingaus. Dessa maneira, o que já tinha sido um pequeno processo, se não se resolvia, ao menos sabia crescer, o que é muito comum nesse tipo de existência.
O tal processo, também chamado de o único arquivo vivo da prefeitura, já contava dois anos quando viveu sua segunda orfandade. Mas não nos apressemos, não é assim que tratamos um processo tão estimado. Houve, antes de tal orfandade, o momento de bajulação. Era tempo de eleição e as ruas estavam tomadas. Não havia um candidato que não o citava no palanque. A posição, claro, defendia o direito à paternidade. Não havia sentido trocar a prefeitura num momento tão importante da vida de um processo. Afinal, estamos todos cansados de saber das drásticas consequências sociais e psicológicas de um processo em andamento que é afastado de seus responsáveis, sejam ou não os pais biológicos. Destaque para o fato supracitado de que o tal processo era um dos únicos processos em andamento, se entendermos andamento como uma fase intermediária entre o engatinhar e os primeiros passos. A oposição, por sua vez, como toda luta de guarda, atacava os atuais cuidadores. Acusava-os de não darem tratamento adequado a um processo tão importante e prometiam elevá-lo a prioridade do dever público. As lutas políticas se esquentavam e o menino que nasceu sem nenhuma esperança quase chegou a ter alguma quando os candidatos, em debate público, prometeram ar condicionado na sala de processos arquivados, playground com escorregador e gangorra, berço, e até mesmo, num momento de euforia da oposição, um tuboágua.
Não se pode saber os argumentos decisivos para uma vitória eleitoral, mas há quem diga que o tuboágua foi um golpe de mestre. Nem é preciso dizer que se as fagulhas da esperança ameaçaram iluminar o nosso herói, suas chamas receberam a água fria antes mesmo que dessem os primeiros estalos. O fato é que o novo prefeito, muito bem intencionado, abriu sim um processo para a feitura do tal tubo de água na sala dos processos. A triste realidade, porém, é que essa intenção resultou, no máximo, em um irmão mais novo para o tal pirralho que encontrava nos demais processos seu destino final. Passada as eleições, o menino já não despertava nenhuma comoção. Ainda por cima, Antônia fora despedida. Se nas vésperas das urnas o moleque sentiu-se como o filho único de uma mátria rica, agora amargava ser apenas um dos milhões de filhos de uma pátria pobre e severa.
Mas a saga de um processo no Brasil não termina tão facilmente. Como veio a dizer o prefeito reeleito quatro anos mais tarde, alguns processos têm vida própria e força de estado. O que quis esse sujeito dizer por força de estado ninguém soube, mas sobre a vida própria não havia exemplo melhor do que o tal menino chamado também de filho da prefeitura. Prova da vida própria dos processos era o fato de que esse mesmo pirralho que por tanto tempo habitou pacatamente o lar penoso dos arquivos, resolveu de uma hora para outra fazer ele mesmo seus atos reivindicatórios. Começou por deixar necessidades em lugares evidentemente impróprios, depois passou a brincar pelos corredores ora apertando os seios das secretárias ora fazendo da mesa do prefeito as traves de um gol. Tanto alarde fez o processo que novamente passou a ocupar os primeiros planos dos interesses da prefeitura que já começava a pensar em transferência.
Tanto pensou, tanto pensou, que não tardou a execução. Em carta ao Governo de Minas, a Prefeitura, juntamente com o Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente, relatou ao Governador do Estado o exótico caso de uma criança que havia, por engano do capacho oficial ou frieza de um prefeito desajustado, arquivado junto a um processo de adoção o próprio beneficiado. Sem entender o insólito documento, o Governador pediu que anexassem à carta o próprio processo que, nesse texto exclusivamente fora designado pelo nome ainda não dito de Processo Adotivo. Surgia então a oportunidade de promover o pequeno garoto a caso estadual. E assim foi feito.
O pirralho, agora já um púbere respeitado pelas suas travessuras, habitava o Palácio da Liberdade e trocava o ambiente municipal pela efervescência do espírito estadual. Ao receber o menino em sua sala, o Governador estranhou o caso e quis saber do que se tratava. Quiseram botar o pequeno para correr, mas a chegada da primeira dama impediu tal feito. Segundo a astuta mulher, aquele devia ser o filho mal gerado de uma sirigaita do interior pelo qual o marido havia passado em campanhas antigas. Se não for mentira que as prefeituras são filhas pobres da mãe estatal e neta da grande matriarca encarnada na figura de nossa Federação, também não se enganava tanto nossa tão astuta dama que naquela ocasião era a “primeira”.
Foi então o caso de testes de paternidade, pensão, adoção e outros processos. Até que o caso não se resolvesse, o pequeno, acostumado a habitar as repartições públicas, ficaria, naturalmente, morando no próprio prédio do Estado. Maiores os pais, maiores os filhos. O menino agora não apenas apertava os seios de secretárias e fazia gols na mesa do governador como se enfurnava em salas secretas com estagiárias e promovia no estado um grande festival de quiproquó que ia desde às falsas demissões de funcionários antigos até à promoção de um simples gari a cargo de confiança do prefeito.
As molecagens foram tantas que um dia o Governador não se conteve: ou davam um sumiço naquele arquivo maldito ou o mandaria para Brasília. Verdade é que não existia no Palácio do Governo ninguém que assumiria o tal sumiço logo em véspera de eleição. Eis então a maneira pela qual uma criança nascida no interior das Gerais, sem beleza nem esperança, chega a conhecer a capital de nosso país e conversar pessoalmente com o nosso excelentíssimo senhor presidente da república.
Naturalmente a conversa foi breve, tanto o presidente acostumara-se a tratar ligeiramente os processos, quanto esse processo específico já estava acostumando com o espanto dos chefes de estado e suas subsequentes ordens: suma com ele daqui. O que esse prestigioso personagem não sabia ainda era que na república as ordens, pelo menos as que se referiam ao sumiço de processo, eram realmente cumpridas. Bem assistido pelo juiz supremo, o presidente ordenou ao capacho federal que despachasse o maldito para junto dos arquivos oficiais.
Se em uma prefeitura do interior a sala de arquivos é lugar que poucos interessam visitar, na república, a sala é lugar proibido a grande maioria dos que ali transitam. O que pode parecer um fim triste para uma criança pode ser muito natural para um processo. E foi nessas circunstâncias que, junto a milhares de CPIs, pedidos de indenizações e projetos de leis ultrapassados, aquele que já havia sido um pequeno processo municipal recebeu, mais do que honras ou esperanças, o que podemos chamar de a verdadeira vida eterna. Eis aqui mais um ser vivo que deixa a vida para entrar na história. Ou, o que pode parecer o mesmo, troca a morte pela prescrição.

 Beto Oliveira, Timóteo – MG