Uma Impressão Bem Diferente

Aquilo era demais para ele! Logo no mês que resolveu tirar a Carteira de Identidade o Governo editou aquela portaria esdrúxula em relação à forma de identificar os cidadãos e as cidadãs. Agora os homens teriam que passar por todo aquele constrangimento, desde os mais novinhos, bebês de colo, passando por garotos mais velhos, adolescentes como ele, adultos e até anciãos. Para as mulheres não haveria nenhum problema; mas os homens estavam sendo motivo de chacotas permanentes. Aliás, todos os dias muitas mulheres curiosas ou maldosas aglomeravam-se em frente às delegacias, institutos de identificação civil e centros de atendimento ao cidadão para ver os homens, indignados, tirando carteiras de identidade e tendo que se sujeitarem à nova regra. Algumas mulheres faziam questão de levarem seus maridos e filhos para o “sacrifício”. Para acalmá-los e também fazerem graça elas diziam:
– É só por alguns minutos. Depois tu lava e fica tudo limpo. Nem vai doer! Não é por causa disso que tu vai deixar de ser homem.
Além de terem de ouvir das mulheres, os homens ainda eram alvo das piadas de homossexuais, e sobretudo de travestis. Bem-humorados e à vontade com a nova situação, eles faziam coro com as mulheres, com diversas gozações:
– Pelo menos hoje, o vovô vai sair do armário!
– É isso aí meu irmão! Vai entrar para nossa irmandade!
No caso dele, além de todo aquele constrangimento, ainda tinha o trauma que o acompanhava desde que se entendia por gente: considerava o seu nome muito feminino: Carolino Lívio Marinho Pinto Rosas. Ele era um garotão de 15 anos, peito cabeludo, voz sonora e compleição física corpulenta. Gabava-se de ser muito macho, praticava boxe e jogava futebol. Era respeitado pelos amigos, pois nunca tinha perdido uma luta, na rua ou no ringue. Entretanto, sentia-se diminuído, uma coisinha de nada, um zero à esquerda, um vermezinho desprezível. Queria tirar a carteira de identidade por que era um documento necessário e obrigatório. Isto é muito óbvio! Inclusive, Carolino estava precisando do documento devido às suas atividades com o boxe. Aliás, este esporte tinha feito com que ele amadurecesse e já não se metia em confusões e brigas de rua. Pensava no boxe como um esporte e uma carreira profissional e precisava da carteira de identidade para fazer a inscrição em torneios oficiais. Entretanto, naquele momento, a maior motivação do rapaz para tirar o documento era para mostrar à namorada. Queria dar uma boa impressão àquela linda morena de 17 anos com quem namorava. É que sua amada já tinha CPF, carteira de identidade e título de eleitor e já ia começar o 2º período de Engenharia Civil. O rapaz lamentava seu desleixo, pois podia ter tirado o documento antes daquele decreto horroroso do Governo Federal. Só de pensar que um mês antes o sistema de identificação governamental ainda era através da impressão digital, lhe dava um arrependimento angustiante. Todavia, independentemente da forma de identificação, precisava mostrar à sua namorada que ele era o cara! Era inadmissível namorar uma garota que já estava toda documentada, estando ele apenas com certidão de nascimento e carteira de estudante. Quanto ao fato da namorada ser dois anos mais velha, ele também se sentia constrangido. Contudo, ele era barbudo, mais alto; enfim, parecia mais velho. E não admitia em hipótese nenhuma que este assunto fosse comentado em público. A namorada estava proibida de falar a idade.
Ah, se ele pudesse tirar a carteira de identidade com outro nome, faria isto. Todos os dias ao acordar, só de pensar no seu nome, sentia ânsia de vômito e uma raiva incontrolável. Ele analisava o seu nome e a cada dia percebia que não tinha nada a ver com sua pessoa. Para ele, Carolino não podia ser nome de homem. Não tinha sonoridade. Carolina sim, era muito feminino e freqüentemente era reduzido para Carol. Toda Carolina gosta de ser chamada de Carol, o que cai muito bem, principalmente para uma adolescente. Ele lembrava que uma vez quase quebrara a cara de um sujeito, por que lhe chamou de Carol. Ah! Aquilo tinha sido inadmissível! Lívio também era outro nome sem futuro. Lívia, para mulher, estava certo; era muito feminino também. Dava idéia de delicadeza, leveza e suavidade. Mas Lívio? Que força tinha para ser nome de homem? Depois vinha o tal do Marinho. Para Carolino, tudo que terminava em “inho” ou “inha” era muito infantil ou feminino. Era coisa pequena, sem expressão. “Inho”, era sufixo de diminutivo e não pegava bem no nome de um sujeito como ele. Depois vinha o Pinto e este então não tinha nem comentários. Ridicularizava o nome de qualquer homem! E por último vinha o Rosas. Aí sim, era a gota de água que faltava! Rosa era a cor das meninas e era inconcebível colocar-se este sobrenome em um menino. Enfim, seu nome era mesmo muito feminino e pastoso.
Entretanto, o máximo que ele podia fazer era resignar-se. E indignar-se também. Já tinha consultado um advogado e este lhe dissera que no seu nome não havia nada de grotesco ou ridículo que justificasse uma mudança. O advogado já havia desencorajado-o a procurar a Justiça ao completar 18 anos. Se ele pudesse, ia tirar satisfação com o seu pai. Porém, este, primeiro namorado de sua mãe, deixou-a grávida e foi morar na capital. Quando Carolino nasceu, o tal camarada tinha voltado à cidade para resolver umas pendências e seu avô materno obrigou-o, sob ameaça, a fazer o registro no cartório. Até hoje Carolino desconfia que seu nome foi uma vingança do seu pai. Afinal de contas, o que ele poderia esperar de um sujeito chamado Marílio Fátimo Pinto Rosas? E além disso, uma semana depois do seu nascimento, o safado desapareceu da cidade e nunca mais apareceu. Ele ficou sendo Carolino Lívio. O Marinho veio de sua mãe, Ana Maria Marinho Maranhão. Se pelo menos tivesse no seu nome o Maranhão de sua mãe e não o Marinho já se dava por satisfeito. E por último, o Pinto Rosas do seu pai. Carolino preferia não ter sido registrado pelo pai. Pelo menos, não teria aquele Pinto Rosas no final do nome. A indignação de Carolino crescia mais ainda quando comparava seu nome com os nomes de seus irmãos. Quando ele tinha dois anos, sua mãe casou-se com um comerciante da cidade, Valdir Estevão Mourão. Deste casamento nasceram a irmã e o irmão de Carolino. Para ele, o nome da sua irmã também era de uma tamanha incoerência. Como é que uma garota de dez anos, doce e meiga, podia se chamar Odoacra Pedra Maranhão Mourão? Quanto ao irmão, de oito anos, este sim tinha um nome apropriado, de dar inveja, nome de macho: Valdemar Cezar Maranhão Mourão.
Carolino namorava sua garota há seis meses e era um namorado do tipo romântico e fiel. Para Carolino, sua namorada era a garota mais feminina, gentil, charmosa, afável, meiga, doce, terna, lânguida, carinhosa e delicada que ele conhecia. Tratava-a com muita amabilidade. Porém, já tinha deixado bem claro que ele era o maioral no relacionamento. Não admitia que a namorada pagasse nada para ele. Sempre que iam a uma sorveteria ou ao cinema era ele que tinha de pagar. Economizava a mesada que sua mãe lhe dava todos os meses para não passar vexame diante da garota. E quando o dinheiro acabava antes do final do mês ele pedia um adiantamento a Ana Maria. Carolino tinha tudo para ser completamente feliz. Somente o seu nome é que fazia-o sentir-se diminuído, uma coisinha de nada, um zero à esquerda, um vermezinho desprezível. E foi com este sentimento de revolta e um constrangimento incontido que Carolino chegou no centro de atendimento ao cidadão naquela manhã. Ia tirar sua carteira de identidade e teria de passar por aquele constrangimento. Preferia mil vezes o sistema antigo, com a impressão digital. Desde que Juan Vucetich Kovacevich inventara o Sistema Datiloscópico em 1891 e confirmara que cada ser humano tinha um impressão digital diferente, a impressão da ponta dos dedos passara a ser usada internacionalmente.
Uma intensa campanha de propaganda fora detonada por todos os meios de comunicação em todo país. A grande novidade estava no ar e o slogan era: “Para tirar a nova carteira de identidade, leve o seu batom!” A campanha publicitária ainda esclarecia: “Em vez da tradicional impressão digital, a identificação agora é através da impressão labial” Todos deveriam levar o batom para passar nos lábios na frente do atendente e depois apor os lábios na ficha de identificação e no formulário da carteira de identidade. As mulheres gostaram da idéia. Porém, os homens…! Bem, alguns só faltaram ter um infarto. As delegacias, institutos de identificação e centros de atendimento ao cidadão ficaram lotados de mulheres curiosas querendo ver a cena de garotos, rapazes, homens adultos e vovôs passando batom nos lábios para tirar a nova carteira de identidade.
Carolino entrou no centro de atendimento ao cidadão todo desconfiado. Ele não havia falado com ninguém do bairro sobre o assunto. Contudo, ele era razoavelmente conhecido e logo chamou atenção. Segurava uma pasta com a certidão de nascimento e no bolso… Bem, no bolso estava o batom. Ainda por cima, tinha de ser um batom vermelho! Como é que ia dar uma boa impressão para namorada com uma carteira de identidade na qual ia aparecer sua impressão labial? Enquanto esperava ouvia pelo sistema de som as explicações para novas regras e aquilo era uma verdadeira tortura: “No Brasil, o sistema de identificação através da impressão digital começou a ser utilizado em 5 de fevereiro de 1903 através do decreto 4.764 do Presidente Rodrigues Alves. Todavia, agora o Governo Federal, através de uma portaria, suspendeu o sistema de impressão digital. No seu lugar, adotou a impressão labial, dando início a era da Queiloscopia, que é o estudo, registro e classificação da mucosa externa dos lábios. A impressão labial fixada na ficha de identificação e no formulário da nova carteira de identidade conterá os sulcos e a grossura dos lábios e a disposição de suas comissuras. Portanto, não suje mais os dedos. Adorne os seus lábios!”
Quando chegou a sua vez, Carolino entregou a documentação e esperou que lhe fossem dadas a ficha de identificação e o formulário da carteira de identidade. Respirou fundo e olhou em redor. De fato, todos estavam olhando para ele. Havia se tornado o centro das atenções. Ao receber os documentos nos quais iria apor os lábios, começou a suar frio. Suas pernas tremeram e pensou que fosse desmaiar. Entretanto, encheu-se de coragem e lentamente pegou o batom. Olhou para o espelho do guichê e começou a passar o batom em seus lábios. Foi então que começou a ouvir um coro efusivo gritando:
– E agora vamos ver, se é Carolino ou Carolina! Com este batonzinho, parece mais uma menina!
Carolino não se conteve. Partiu para cima de um colega da escola, esbofeteou-o de tal forma que o sangue escorreu pelo nariz. Chutou a perna de outro e continuou dando socos. Estava com tanta raiva, que nem conseguia enxergar direito em quem estava acertando. E foi dando socos para o ar e chamando todos de canalhas que ele acordou.
Carolino Lívio Marinho Pinto das Rosas nunca havia tido um pesadelo tão grande. Acordou cansado e suado. Estava visivelmente irritado e quase não ouviu sua mãe bater na porta do seu quarto, chamando-o:
– Carolino, meu filho, levante e venha tomar o café da manhã. Você disse que hoje vai tirar sua carteira de identidade. Coloque original e cópia do seu registro de nascimento e duas fotos 3×4 em uma pasta e vá com tudo organizado. Saia cedo para ser atendido logo.
– E o batom mamãe, não é mais preciso?
– Batom, Carolino? Para tirar carteira de identidade? Você está ficando maluco meu filho? Logo você, perguntado por batom! Agora, eu fiquei preocupada!
– Mãe, fique tranqüila. Foi que eu tive um pesadelo terrível, assustador e tremendamente angustiante.
Carolino levantou-se mais tranqüilo. Ainda estava um pouco atordoado, mas refazia-se do susto. Por que será que tinha tido aquele sonho horrível no qual a impressão digital havia sido substituída pela impressão labial para tirar a carteira de identidade? Então, lembrou-se que no dia anterior havia presenteado a namorada com um batom vermelho com aroma de morango e ela havia usado. E aquele batom vermelho naqueles lábios carnudos encheu-o de desejo e beijou-a com toda sofreguidão que um beijo pode ter. O rapaz lembrou-se que dormiu na noite anterior pensando na boca da namorada, naqueles lábios adornados com o batom vermelho que lhe dera. Carolino aprontou-se, preparou a pasta com a documentação e as fotos. Havia tirado as fotos para a carteira de identidade de paletó e gravata; para dar uma boa impressão à namorada. Após tomar o café da manhã sentiu-se revigorado e recuperado do susto causado pelo pesadelo. Aliás, de todo aquele pesadelo em relação à carteira de identidade, lamentava que a única coisa verdadeira era o seu nome. Tanto no sonho horrível, como na vida real, ele era Carolino Lívio Marinho Pinto das Rosas. E com aquele nome sentia-se diminuído, uma coisinha de nada, um zero à esquerda, um vermezinho desprezível. Naquela manhã o rapaz foi tirar sua carteira de identidade. Chegou cedo e foi logo atendido. Sentiu-se o homem mais feliz do mundo ao melar os dedos para apor suas impressões digitais na ficha de identificação e no formulário da carteira de identidade. Saiu com o protocolo da carteira e foi para a Biblioteca Municipal estudar. Era mês de férias, mas o rapaz não queria perder tempo. Naquele ano ia fazer 16 anos e estava preparando-se para o vestibular de Educação Física.
Três dias depois Carolino voltou ao centro de atendimento ao cidadão e pegou sua carteira de identidade. Era uma sexta-feira e tinha marcado com a namorada para irem a um show de música sertaneja à noite. Chegou na casa dela por volta das 20 horas com a carteira de identidade no bolso. A garota estava se aprontando e enquanto ele a aguardava na sala ficou pensando na boa impressão que daria à sua amada com aquela carteira de identidade com fotografia de paletó e gravata e sua impressão digital bem firme. Ficou pensando no quanto era feliz por ter como namorada aquela linda morena. E com uns cinco minutos sua namorada entrou na sala radiante e bela. Carolino beijou-a carinhosamente e mostrou-lhe sua identidade. E sua garota, graciosamente respondeu:
– Meu Carol lindo, você está o máximo nesta foto! Estou orgulhosa de você. Mas eu tirei a minha primeiro! Olhe aqui a data.
O rapaz sorriu satisfeito e beijou sua namorada novamente. Ela sim; era a única pessoa que podia lhe chamar de Carol. Carolino pegou a carteira de identidade da namorada e também ficou admirando a fotografia dela. Era um rapaz apaixonado. Apaixonado pela garota mais feminina, gentil, charmosa, afável, meiga, doce, terna, lânguida, carinhosa e delicada que ele conhecia. Apesar do seu nome forte, sonoro, robusto, sólido, grave e retumbante: Frederica Ricarda Dagoberto Arcoverde Falcão.

Marinaldo Lima, Olinda–PE